Assim que a aeronave parou, foi tomado de um enorme alívio, como se toneladas que estavam sobre os seus ombros, tivessem sido surpreendentemente retiradas. Ainda assim, a lembrança de que passaria por tudo aquilo novamente dentro de uns poucos dias, o inquietou. Com um ligeiro chacoalhar de cabeça como se estivesse espargindo os maus pensamentos, como a costumeira e velha amiga ansiedade, se concentrou nos toques finais, como pegar a bagagem de mão nos maleiros acima dos assentos e o restante dos seus pertences, nas esteiras.
A idéia de estar na cidade de Gotham o excitava de tal forma que a sua respiração ficou acelerada,a ponto de sentir o ar gelado dilatando tudo por dentro. Conseguir um taxi não foi uma tarefa tão simples quanto poderia imaginar, principalmente em função da precariedade do seu inglês.
Após alguns desencontros, chegou a um modesto hotel, o que as suas precárias reservas lhe permitiram. Foi recebido por um gerente com gestos indolentes, o que fez lembrar-se de alguns filmes em que já tinha visto pessoas como aquela. O funcionário fumava um cachimbo com um cheiro um tanto desagradável, lhe estendeu o livro de registros. A seguir recebeu a chave e subiu para o seu quarto. Assim que abriu a porta foi recebido por duas enormes baratas que bateram em retirada, assim que o intruso chegou. Esconderam-se em direções opostas o que acabaria exigindo de sua parte um enorme esforço para localizá-las e abatê-las.
Após um banho regenerador, resolveu sair para fazer o reconhecimento daquele estranho e fascinante território, já que a sua entrevista só se daria no dia seguinte.
A cidade parecia ter sido privilegiada por uma enorme lua que além de grande irradiava uma forte luz prateada. Esse foco luminoso era meio que absorvido pela constante bruma que envolvia a cidade nas quotas mais baixas. Onde quer que se estivesse, a brisa carregava um forte perfume de baseado.
A vida noturna era muito intensa em todos os seus quadrantes. Um pensamento lhe veio à mente indicando que Gotham City era o DNA central da contra cultura do mundo. Nada acontecia sem que fosse impresso a chancela da cidade mais underground do mundo. Sem essa marca, nenhuma manifestação adquiria força. Ela lembrava a extravagância dos bairros do Soho e Chelsea dos anos 40, tão bem descritos pela genial Agatha Christie. Percorrendo as suas ruas deparava com coisas inusitadas. Aqui todas as etnias do mundo se mesclavam para produzir um novo tipo de cultura, uma nova forma de se manifestar.
Algumas ruas eram escandalosamente imundas, sacos de lixos espalhados de forma desordenada pelas calçadas, grupos de indigentes se aglomeravam em torno dos latões de lixos onde improvisavam fogueiras para se aquecerem, grandes nuvens de vapor provenientes das galerias subterrâneas, distorciam fantasmagoricamente as formas das pessoas, dando um toque surreal a tudo o que se podia ver. Como se estivesse num transe hipnótico, nada lhe escapava. Precisava a todo custo, registrar as coisas que estavam acontecendo.
Em alguns trechos, via-se conjuntos musicais, em outros, grupos danças folclóricas, representações e toda sorte de manifestação cultural. Automóveis desfilavam lentamente com músicas sendo tocando num volume altíssimo, aumentando assim aquela grande confusão, afinal ali era o grande "cordão umbilical do mundo", onde tudo era absurdamente normal. Andou a esmo, sem direção e por muito tempo, até que chegou a uma enorme e iluminada praça, que acabou lhe lembrando Roma. Além dos chafarizes, as esculturas de figuras mitológicas davam um tom meio fantasmagórico ao conjunto, sem contudo tirar a sua impressionante beleza. Os monumentos barrocos sempre foram os seus preferidos e aqui a reunião de deuses, deusas, cupidos e outras figuras ícônicas do imaginário, estavam presentes.
Tomando quase que toda a praça, um grupo representava uma ópera bufa e a julgar pelo entusiasmo dos seus participantes e pela significativa platéia, o espetáculo estava sendo um sucesso. O final foi fora do ensaiado, mas nem por isso menos agradável. A prima dona com gestos teatrais e com uma voz vigorosíssima, finalizava a apresentação, quando ao dar um passo para trás se desequilibra e cai de costas dentro da fonte,levando consigo um ruidoso farfalhar do seu pomposo vestido. Os demais componentes do grupo acreditando que se tratava de mais umas das surpresas da "grande estrela", seguiram-na, terminando assim o espetáculo com todos se atirando nas águas da fonte, o que provocou nos presentes reações de agrado, levando em conta os ensurdecedores aplausos.
Após esse primeiro e inesquecível passeio, retornou para o seu quarto de hotel. Tão logo abriu a porta, procurou como olhar, as suas repugnantes companheiras, talvez as verdadeiras donas do local. Não as vendo, acabou optando por uma vingança até certo ponto meio idiota. Passaria a noite com as luzes acesas, o que esperava, as obrigaria a ficarem entocadas no horário que costumavam fazer as suas incursões, já que eram insetos de hábitos noturnos. A idéia de dividir espaço com companhia tão desagradável, acabou por interferir no seu sono e foi com muita dificuldade que finalmente acabou adormecendo...
LC OLIV