... Acordou cedo mesmo não tendo uma noite das mais repousantes. Ainda assim, se sentia revigorado não só pelo reencontro com os seus amigos do centro velho da cidade, como pelos déjà vu que experimentou na subida para casa. Ainda na noite anterior, em sua última parada em frente de onde tinha sido um dia a casa de sua avó materna, foi talvez o momento mais forte para ele.
Em um curto espaço de tempo, experimentou uma série enorme de lembranças e sensações. Ali ainda na calçada, se viu sentado no parapeito largo da janela do quarto da frente, onde ficava sentado nos finais de tarde, esperando pelo retorno de sua mãe. Nessa época o seu pai ainda continuava no seu exílio interno, onde ninguém sabia do seu paradeiro, nem mesmo a sua mãe.
O que motivou tudo aquilo foi tinha sido as posições e atitudes políticas. Naqueles dias do ano de 1957, sequer tinha consciência dos fatos, mas com o passar dos anos foi conhecendo e descobrindo tudo que cercava as ações de seu pai, não somente como jornalista, mas como ativista político e como pessoa. Essas descobertas o encheram de orgulho e com toda certeza, hoje eram a fonte inspiradora maior de sua cruzada no sentido de combater toda sorte de injustiças.
As horas que se seguiram foram para checar todos os preparativos para a sua grande viagem. Nada poderia ser esquecido ou negligenciado. Os cuidados com os documentos levantados já tinham sido tomados. Telefonou para as pessoas com as quais tinha deixados as cópias eletrônicas de todos os dossiês, verificou pela centésima vez a bagagem, reinventariou tudo o que levaria, desde os objetos de higiene pessoal até as medicações que tomava costumeiramente, sem mencionar alguns dos comprimidos mágicos que guardaria como o seu maior tesouro pessoal.
As suas andanças pela casa lembravam uma pata choca. Trombava em tudo, falava baixinho, repetia as coisas, como se estivesse num transe hipnótico.
Já com toda a a bagagem pronta, aos trancos e tropeções, saiu de casa. Ainda no portão, voltou e verificou mais uma vez se estava tudo certo. A sensação de que estava esquecendo de algo ainda persistia e ele tinha certeza embora não conseguisse se lembrar de que se daria conta quando não desse mais pra voltar, era sempre assim. Nesses momentos ele tinha a convicção que a tal Lei de Murphy, tinha sido criada tendo ele como inspiração.
Atravessou a rua aos trambolhões de tanta bagagem, quase foi atropelado, mas felizmente conseguiu alcançar vivo o outro lado e caminhando cerca de mais uns vinte metros chegou à padaria, onde pretendia tomar um café e esperar pelo taxi que o levaria até o aeroporto. Apesar de estar muito adiantado, a todo instante checava as horas no celular e não contendo-se, ligou mais uma vez para o amigo que o levaria. Este com uma infinita paciência tentava tranquilizá-lo lembrando que ainda dispunha de muito tempo para o horário marcado.
Algum tempo depois, divisou o carro do amigo chegando e se sentiu um pouco mais aliviado, muito embora a agitação estivesse longe de diminuir. Tomou mais um café, não sem antes derrubar um pouco no peito deixando uma mancha enorme na roupa, se bem que nele aquilo era quase que rotineiro. Com o auxílio do amigo colocou todos os pertences no carro e finalmente seguiram para o aeroporto.
O trajeto foi outro martírio. A todo instante paravam em virtude de engarrafamentos e aquilo foi assim até chegarem ao outro lado da cidade. A espera pelo embarque ainda duraria "algumas eternidades" e naqueles momentos experimentou duas sensações fortíssimas e antagônicas.
A vontade de que a espera fosse curta, ao mesmo tempo lembrava do pavor que iria passar após o embarque. A fobia de voar, de espaços confinados. As mãos estavam suadas e sendo brutalmente retorcidas. Não conseguindo se controlar, se dirigiu à lanchonete e optou por mais um café.
Após adoçar o conteúdo, deu um longo gole para o seu infortúnio. A bebida parecia conter todas as labaredas do inferno. Num único instante conseguiu queimar, lábios, língua, palato e por reflexo acabou engolindo a lava disfarçada de café. A descida não foi menos torturante, foi queimando tudo até chegar ao estômago. Com os olhos turvos e injetados, tentava abocanhar um pouco de ar fresco, chegou a cogitar de um gole de água gelada, mas desistiu ao ver as garçonetes num canto rindo e lançando olhares maliciosos e de escárnio em sua direção
Finalmente o momento tão esperado . Vislumbrou o avião manobrando na pista e estacionando. Logo em seguida, a porta de embarque se abrindo e a escada de acesso sendo acoplada. pouco depois, surgiu a figura de uma esbelta aeromoça que recepcionaria os passageiros.
Com a sensação de que tinha um vulcão no estômago pronto para entrar em erupção e com a bagagem de mão que se resumia a uma pequena valise, rumou em direção àquele monstrengo horripilante e dentro do qual passarias horas intermináveis.
Subiu as escadas num passo vacilante, quase não notou a gentileza com que fora recebido pela moça. Estabanadamente entrou no avião e acabou encontrando o seu assento com alguma facilidade. Para sua sorte a sua poltrona era na janela o que de alguma forma minimizaria o seu horror a lugares confinados.
Pouco tempo depois com todos os passageiros já acomodados, ouviu com sobressalto o ronco surdo das turbinas, À medida que a aeronave se deslocava, a sua apreensão aumentava. A sua respiração se tornou um pouco mais ofegante quando no final da pista o veículo girou para em seguida acelerar para decolar. No momento que o bólido deixou o chão, as suas mãos crispadas apertavam com muita força o braço da poltrona, sentiu um leve enjôo e com dificuldade se controlou.
Agora nada mais poderia ser feito e numa tentativa de se acalmar, lembrou para onde estava indo, afinal Londres valia qualquer tipo de sacrifício, principalmente para ele que a associava a toda sorte de mistérios e histórias recheadas de encantamentos, sem esquecer que lá morava o célebre e mundialmente notório detetive belga, o mestre das mais brilhantes celulazinhas cinzentas...
LC OLIV