... O Palco e o Tempo
Um dia qualquer do ano de 1969.
No âmbito político do país, o auge dos efeitos do AI-5.
São quinze horas de uma quarta feira desinteressante.
Uma grande concentração de estudantes na Av. Ipiranga, uma artéria emblemática do centro da cidade de São Paulo.
Na confluência com a Rua da Consolação próxima da grande igreja, esse mesmo grupo composto de aproximadamente trezentes pessoas, desce como um bloco em direção à Praça da República.
Chegando em frente ao Hilton Hotel, já quase na esquina da Rua Major Sertório, mais precisamente na rua Araújo, aglomeram-se desordenadamente e gritam palavras de ordem como repúdio por um estabelecimento de origem estrangeira, algo muito comum nos protestos de então.
As hostilidades na realidade eram desnecessárias, visto que ofender o pessoal de um hotel americano não era uma coisa muito inteligente, mas na época aquilo era um exemplo típico da ação visceral e portanto, pouco sensata, que as manifestações tinham como perfil.
O foco era demonstrar a insatisfação que alguns segmentos da sociedade tinham pelos rumos nada democráticos que o país estava tomando e a crescente influência do capital estrangeiro na economia do país.
A impressão incial que Eice teve como expectador, foi novamente a ideia de insetos manipulados.
Reiniciando cortejo e chegando na altura do Edifício Itália, já bem próximos da Av. São Luís, os estudantes foram confrontados por uma tropa de cavalaria, que subia na direção contrária com extrema truculência, agredindo tudo que surgia pelo caminho, com o objetivo de dispersar a qualquer custo, aquela horda de baderneiros.
A ideia de rotulá-los como ameaças à segurança nacional, surgiria mais tarde até como uma sofistificação dos organismo de inteligência, que na época norteavam as ações do governo e interferiam em todos os setores da vida política e econômica do país, não como um "norte" a ser seguido, mas algo a ser temido.
O confronto foi como de se esperar, um pequeno massacre.
Os estudantes além do estardalhaço, a única coisa que dispunham eram alguns poucos que portavam estranhos sacos de tecidos, presos à cintura, repletos de bolinhas de gude. Outros as transportavam nos bolsos das próprias calças.
Com a chegada dos cavalos, os jovens jogavam as bolinhas de gude que acabavam por derrubar os pobres animais e seus respectivos cavaleiros.
Foi tomado de um grande emoção que o Eice se viu um adolescente de 16 anos, magérrimo, olhos arregalados, jogando as tais bolinhas e alertando aos brados, para a chegada dos "frações aparentes".
Essa era uma gíria, ou código que usavam para identificar a tropa de cavalaria. Na verdade, fração aparente se caracterizava, quando o numerador era igual ao denominador, na realidade um inteiro.
Muitos estudantes apanharam mais tarde quando os policiais entenderam o significado dessa intrigante e pouco elogiosa denominação.
A escaramuça foi muito desigual. Enquanto os policiais além dos cavalos e fardas protetoras, portavam cassetetes, bomba de efeito moral e armas de fogo, os estudantes eram tremendamente vulneráveis e não dispunham de nenhuma forma de proteção...
Além da gritaria e deslocamentos rápidos, pouco ou nada podiam fazer.
Do lado oposto à Praça da República, exatamente entre as rua Barão de Itapetininga e Sete de Abril, cerca de meia dúzia desses garotos, foram encurralados por policiais.
Ao tentarem desordenadamente fugirem, foram agredidos e repentinamente, ouve-se o estampido de um tiro.
Assustado como um coelho, Eice vê o seu companheiro a menos de um metro de si, tombar alvejado por um tiro no rosto.
O choque foi tão grande que ele ficou por alguns instantes petrificado, o que o deixou vulnerável.
A tensão foi tamanha que provocou no Eice expectador a decisão de interferir na cena para salvar a si próprio, tamanho foi o impulso de preservação.
Tal ato criaria um dilema, pois a sua proposta de retorno era a de ser apenas um mero observador, mas diante do risco agiu por impulso.
Num salto típico dos movimentos de um artista marcial, agarra o garoto pelo braço e o arrasta para fora da zona de perigo.
Este meio atônito quando se dá conta do acontecido, tenta agradecer, mas o "seu velho eu", já tinha se afastado e misturado-se ao caos de pessoas.
A visão do seu amigo e colega de escola caído no chão envolto numa poça de sangue, criou um trauma que o acompanharia por um longo tempo de sua vida...
LC OLIV
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