sábado, 26 de dezembro de 2020

     ... A travessia foi tranquila, durando em torno de uns cinquenta minutos, apesar de uma densa bruma presente durante todo o trajeto. Hastings acompanhado de Eice, postou-se no convés a fim de apreciar melhor a paisagem, mesmo com a visibilidade reduzida. Falava em voz alta, pois o vento naquele momento era forte dificultando qualquer tipo de conversa. Poirot por sua vez como um bom fóbico, preferiu a parte interna da embarcação, de forma que não precisasse ver o mar e as ondas que naquele momento se não eram altas, eram  agitadas, a ponto de tornar o navegar um tanto agitado.

     A atracagem foi um tanto trabalhosa, visto que as águas estavam bastante turbulentas, além de um grande número de embarcações que tiveram as suas partidas e chegadas prejudicados pelos mesmos motivos, provocando um princípio de caos no embarcadouro. Nesse instante, era visível a irritação de Poirot, que ansiava por colocar os pés em terra firme. Sentia-se assim toda vez que era obrigado a deslocamentos pelo mar ou pelo ar. Sempre fora adepto e defendia vigorosamente as viagens através dos automóveis ou quando de grandes distâncias, através de trens, por  serem os seus transportes preferidos tanto pela segurança, como pelo conforto.

     Após alguns desencontros, finalmente conseguiram colocar as bagagens em um automóvel que prontamente se dirigiu para um hotel em Montmartre, por indicação do detetive. Chegaram ao destino em menos de vinte minutos. Era um estabelecimento de arquitetura bem antiga, revelando ter sido uma grande vivenda num passado distante. Com algumas adaptações e contínuas reformas, adquiriu um toque bastante peculiar e  aconchegante.

     A maneira como foram recebidos pelo proprietário, demonstrou uma intimidade de longos anos. Ficaram bastantes surpresos quando este revelou que Poirot fora hóspede fixo por um longo período naquele estabelecimento nos anos que antecederam a  grande guerra. A insegurança gerada pela iminente chegadas das tropas nazistas, obrigou muitas pessoas a deixarem as suas acomodações, buscando lugares mais seguros. Como a França era um dos alvos cobiçados por Hitler, pouco depois da invasão, Poirot se viu obrigado a se deslocar para a Inglaterra, chegando após algum tempo ser instalado numa grande casa alugada pelo governo para hospedar refugiados e alguns ingleses feridos no front e foi nessa casa que se daria o emblemático encontro de Styles, onde o belga iniciou toda a sua brilhante carreira ao lado do então tenente Hastings.

     Cessadas as gentilezas e mesuras, Poirot pediu três acomodações de solteiro e foi nesse momento tomado de uma agradável surpresa, quando o anfitrião o informou que o quarto que ocupara no passado, estava disponível. O pequeno belga não escondeu a sua enorme satisfação por tão feliz coincidência e ficou ainda mais radiante ao saber da transformação do mesmo em uma confortável suíte, pois para ele ter um banheiro privativo era algo a que dava uma grande importância.

     Depois de devidamente instalados em suas respectivas  acomodações, encontraram-se na sala de estar, onde decidiram rapidamente, pelo local do jantar. Poirot estava faminto, visto que por conta de seu nervosismo momento antes da travessia, se absteve de comer por causa das fortes náuseas de que fora acometido. Agora em terra firme, sentia-se revigorado e a possibilidade de degustar iguarias de uma culinária que sempre apreciara, aumentava tanto o seu paladar quanto o seu entusiasmo.

     Deixaram o pequeno hotel conversando animadamente e optaram por irem a pé, pois a noite além de uma temperatura agradável, tinha um céu cravejado de estrelas, além dos perfumes dos jardins tão abundantes naquelas redondezas. Cerca de quinze minutos depois, chegaram a uma ruela calma e pouco iluminada, pois as copas das árvores encobriam as luminárias. Cerca de uns cinquenta metros a frente, uma edificação se destacava das demais exatamente pela claridade dos seus letreiros, onde se lia "Grillades et Cassaroles".

     Era uma residência térrea, adaptada para um estabelecimento comercial, mas que mantinha muito de suas características originais. À entrada, três janelas com vidros transparentes, tendo na parte interna, cortinas da metade para baixo, deixando visível apenas um pequeno detalhe do seu interior.

     A decoração  era propositadamente rústica, com paredes de reboco em alguns trechos trincados e em outros com tijolos aparentes e forradas de pequenos quadros com pinturas retratando paisagens campestres. Foram recebidos de forma bastante simpática o que os deixou bastante à vontade. A escolha do cardápio ficou por conta de Poirot que acabou optando por um Goulash Húngaro Tradicional e enquanto aguardavam pelo prato pedido, foram servidos por um encorpado e escuro vinho acompanhado de enormes e temperadas azeitonas, servidas em terrinas regadas num azeite muito verde, com fartas fatias um pão meio sovado, característico da região,  de uma textura extremamente macia.

     Pouco tempo depois chegava o prato principal e foi visível a satisfação de Poirot ao notar a expressão de aprovação dos seus convidados, assim que degustaram aquele estranho prato. Finalizando o jantar, foram brindados com grandes e congeladas taças contendo frutas picadas com cores variadas e regadas por um licor que não souberam identificar. Finalizaram com um café expresso e pouco depois, pesadamente deixaram o local retornando para o hotel. 

     Ainda no caminho de volta, foram brindados com mais uma surpresa, pois Poirot os levou para conhecer a Basílica de Sacré Coer, um dos pontos mais encantadores de Paris, o marco maior e mais emblemático de Montmartre. O espetáculo era realmente algo deslumbrante, não só pelos perfumados jardins, como pelas suas escadarias monumentais e também pelo grande número de pessoas. Após o primeiro lance de escadas, quando já estavam já perto do topo, sentaram-se como muitas outras pessoas, para apreciar umas das visões mais empolgantes do mundo, a de Paris a noite. Enquanto embevecidos desfrutavam daquilo, poucos metros abaixo,  um rapaz tocava numa harmônica típica, a apaaixonante Sous le ciel de Paris. Durante a execução,  vários casais aproveitaram o espaço no patamar entre as duas escadarias para dançar,  fechando de forma bastante festiva a execução que por sinal, a pedido dos presentes, foi repetida várias vezes.

     Findado o improvisado espetáculo, retornaram para o hotel, onde passaram uma repousante noite e com a perspectiva de uma agradável estadia pelos próximos dias... 




LC OLIV

domingo, 6 de dezembro de 2020

      ... Após o anúncio da viagem para a grande capital vizinha, todos foram tomados de uma certa euforia, a exceção é claro do infeliz e taciturno inspetor da Yard. Sentia-se de alguma forma posto de lado pelos seus companheiros e ainda por cima um ponta de ciúmes o corroía, pois tinha vívidas as lembranças de todas as vezes que Poirot se referia ao comissário parisiense, como uma pessoa muito além do ordinário da maioria das pessoas, tanto no que se referia ao seu intelecto, como também às características de suas investigações, a forma como conduzia a sua equipe, sempre calcado no lado humanista e que sempre provocava nas pessoas uma grande admiração e respeito pelos resultados obtidos 

     Toda vez que era questionado sobre esses sucessos, tinha sempre a mesma explicação. Os seus casos os enxergava como dramas humanos e só conseguiria entendê-los, se fizesse parte dele como se fosse um membro da família, um parente ou alguém muito próximo do ator principal da trama ora investigada.

     Um conceito do qual se valia e  que usava com muita frequência e que ele entendia como algo extremamente necessário para o sucesso de qualquer investigador, o de ser uma pessoa dotada de uma forte empatia e enxergar sempre o fatos ou os fatos que se apresentavam, pelo lado psicológico,  examinando e analisando o perfil de todos os envolvidos. Em alguns momentos se fosse necessário, sentir-se na pele do suspeito.

     Para Poirot, esse era o estilo que mais apreciava, que ele resumia numa frase já célebre, usar as celulazinhas cinzentas do cérebro. Colocar-se em alguns momentos como um grande e privilegiado expectador de uma peça teatral e a partir da representação dos atores, chegar a uma inequívoca conclusão.

     Para o inspetor da Yard, esse era um estilo que não o agradava muito, já que era adepto de mais ação e menos de análises intelectuais de gabinete. Entendia que a vida policial era no campo farejando pistas como um cão de caça, fustigando sem tréguas, tentando de todas as formas possíveis encurralar o suspeito até o momento final, que culminava com a sua confissão,  detenção e a consequente solução do caso.

     O pequeno detetive já tinha traçado um meticuloso mapa mental do roteiro que seguiriam, desde a chegada a Paris. Onde se hospedariam, os lugares das refeições, oportunidade de rever alguns velhos conhecidos e o prazer de degustar iguarias que só se encontrava em Paris.

     A opção por Montmartre, se deveu não somente pela logística e beleza do local, mas também pelo lado emocional, pois foi ali que viveu um período inesquecível de sua vida. Foi quando conheceu Jules Maigret, um jovem e promissor policial que ainda era lotado em subúrbios de menor expressão e que com o passar dos anos e devido ao seu grande talento, foi galgando não somente melhores distritos, como  a ascenção a novos postos hierárquicos até chegar no famoso Quai des Orfevres às margens do Sena, na condição de comissário.

     Os dias que se seguiram, foram de muita atividade para o trio. Eice optou por continuar em seu hotel, pagando adiantadamente a sua hospedagem e solicitando da gerência o cuidado com a sua correspondência, bem como uma estrita atenção se durante a sua ausência fosse procurado por alguma pessoa, ou qualquer coisa suspeita. Uma gratificação antecipada e reservada acabou por conseguir por parte do funcionário, um colaborador entusiasmado.

     Em Whitehaven Mansions, Poirot tinha anotado tudo e cobrava de sua secretária cada ítem como se estivesse conferindo um valiosíssimo inventário. Em alguns momentos a impressão que se tinha, que o detetive iria embarcar para uma grandiosa "turné autour du monde", a julgar pelo volume de sua bagagem. Apesar de todos os afazeres, as investigações continuaram em seu ritmo normal, tendo todas as manhãs reuniões pelo café da manhã, para que todos pudessem se reportar em suas ações. Apesar do seu descontentamento, o inspetor era bastante meticuloso na apresentação de suas atividades e de sua equipe. Não fazia muita questão em demonstrar o seus descontentamento com a viagem do trio e que a impossibilidade de acompanhá-los o desagradava profundamente. A sua irritação aumentava visivelmente quando percebia que ninguém notava o seu estado de ânimo. Mantinha uma tênue esperança de que naqueles dias, algo pudesse acontecer como um fato novo para mudar o curso das investigações. Era um desejo quase infantil que carregava dentro de si, onde se via o protagonista maior da solução do caso e orgulhosamente receber os louros pela solução de um caso de "importância internacional".

     Finalmente o grande dia tinha chegado. O veículo que os conduziria até o porto, estacionou na porta do prédio com três hortas de antecedência. A chegada se deu rapidamente e Poirot um tanto excitado acompanhava tudo, desde as bagagens, como os bilhetes de embarque e a localização da embarcação que os levaria.  Japp valendo-se da sua condição de policial, sentia-se um pouco recompensado ao ver que estava sendo atendido prontamente por todos os funcionários e como uma deferência permitiram o acesso do trio mesmo tão cedo, para se acomodarem da maneira mais confortável. 

     Era uma grande lancha que podia transportar cerca de 50 pessoas confortavelmente e a duração da travessia do Canal, levaria em torno de 45 minutos. Hastings nesse momento, portava-se como um guia turístico e dava explicações para Eice. Além disso, como amigo íntimo do detetive, sabia que este iria procurar algum local dentro do convés, de tal forma que pouco ou nada visse do mar, pois não se sentia muito bem em travessias daquela espécie. Piscando um olho maliciosamente disse que o belga sentia enjoos.

     Depois de uma longa espera, soou  o ronco dos motores, ouvia-se os gritos de ordens para o recolhimento da escada de acesso e a soltura das amarras. Vislumbrou o inspetor com uma cara de desaponto acenando e em seguida,  a embarcação virou a bombordo emitindo um som baritonado de sua buzina que ecoava graciosamente por todo o cais, anunciando a sua próxima parada, a deslumbrante Paris, o sonho de todos os sonhos...



LC OLIV