quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

     ...os dias que antecederam o seu embarque foram muito intensos, quase febris.  Cuidadosamente checava  todos os preparativos para empreender a  viagem dos seus sonhos. Para ele Londres era uma cidade  revestida de grandes mistérios e muitas histórias. Tivera o cuidado de registrar todos os documentos num cartório e deixara vários pen drives com pessoas cuidadosamente escolhidas, para no caso de algum infortúnio o colher durante a sua estada fora do país, que pudessem ser encaminhados às autoridades do ministério público e para algumas pessoas previamente selecionadas  junto aos órgãos de imprensa para a sua devida publicação, a fim de dar projeção às suas denúncias.
     Sentia-se muito excitado, mas ao mesmo tempo fortalecido em suas convicções. Todavia,  a necessidade de repouso era vital e mais uma vez estava tendo dificuldades  para conciliar o sono. Depois de muito relutar, acabou ingerindo um daqueles "comprimidos kafkanianos" e os resultados não demoraram muito em se manifestar, muito embora tivesse aprendido com os colegas da Liga, a internalização de intenções que o permitiam escolher a época de suas viagens, acabou optando pelo tempo atual. Reencontrar os amigos que fizera no centro velho, e que de alguma forma foram os responsáveis por tudo que estava acontecendo, acabou prevalecendo em seu íntimo.
     Cerca de 10 minutos após a ingestão da medicação, literalmente apagou, dando início àquele processo que já conhecia. Primeiro a transformação da matéria em algo semelhante a um ectoplasma, seguindo  o mergulho naquele agitadíssimo turbilhão culminando com a aterrissagem de forma ruidosa e meio grotesca no meio de uma calçada qualquer, sem saber ao certo onde.
     Após  a sua chegada lembrando a vinheta de abertura de uma comédia inglesa, levantou-se limpando-se e em seguida a tentativa de se localizar, embora já intuísse  sobre o seu paradeiro. Confirmando as suas suspeitas, o forte odor de urina acabou por dar-lhe a certeza de onde estava. Caminhou sem rumo ainda tentando se adaptar ao novo ambiente. Há algum tempo que não vinha para essas banda e para sua satisfação, não demorou muito e foi reconhecido por alguns moradores locais que ainda se lembravam dos tempos das suas visitas diárias.
     O reencontro acabou sendo muito agradável e até mesmo um pouco festivo. Pouco a pouco as pessoas foram chegando e alegremente confraternizando. Algumas demonstravam saber de  tudo o que estava acontecendo e de suas investigações. De uma certa forma ele acabara se tornando o herói daqueles desvalidos que já não tinham há muito tempo algo em que acreditar ou se apoiar. A  ideia de ter alguém que se importasse com eles, mesmo que isso não implicasse numa mudança nas suas condições de vida, era muito importante e foi nesse momento que se convenceu o quanto o afeto e um gesto de carinho por mais simples que pudesse ser, como era gigantesco para eles.
     Aquela constatação acabou por fortalecer em seu íntimo a necessidade de seguir adiante com todas as suas forças. Faria isso também por eles a quem chamou um dia de o "estranho povo das calçadas". Continuaria sim em sua cruzada e reassumiu de forma silenciosa e não menos solene o seu compromisso com aqueles "amigos". A confraternização seguiu noite a dentro, não demorou muito e o número deles tinha crescido muito a ponto de chamar a atenção das patrulhas que começaram a circular por perto a fim de se inteirarem do que estava acontecendo.
     Era uma noite fria e acabou sendo convidado a se acercar de uma fogueira improvisada num enorme latão onde as pessoas se aqueciam. A sua chegada foi recepcionada com uma rodada de aguardente que corria de mãos em mãos num pequeno frasco de plástico. Acabou brindando e com algum esforço se controlou para suportar a descida fumegante do líquido. A conversa estava muito animada e seguiu noite adentro.
     Já no meio da madrugada e com todos mais calmos, alguns anestesiados pela bebida, pouco a pouco a festiva reunião foi se dissipando, com alguns procurando por  seus cantos de repouso, alguns com caixas de papelão, outros de pedaços de cobertores sempre  com a proteção de alguma marquise para mais uma noite daquela infeliz existência. Mesmo assim, ainda podia ver alguns sorrisos e toques de satisfação, aquilo produziu em seu íntimo uma desconfortável fisgada. Talvez uma cobrança a que todos deveriam estar suscetíveis de sentir.
     Retornou a pé, pois àquela hora já não existia nenhum transporte funcionando. No caminho experimentou vários momentos de flash back. Passou pela rua onde um dia o seu pai tivera um jornal. Como que num déjà vu, voltou quase cinco décadas e relembrou daquela fase de sua vida. Mais acima no seu trajeto, desviou-se e acabou passando em frente ao antigo colégio onde estudara durante um ano, mais acima o hospital onde nascera e poucas quadras depois,  a igreja onde fora batizado. Seguindo em frente, mais uma vez se desviou para passar em frente à casa de sua avó materna, uma das criaturas mais lindas  e doces que tivera a sorte de conhecer em sua vida.
     Embora tranquilo, estava  emocionado por reviver tantas lembranças. Já na parte final do trajeto e ainda com aqueles breves flashes de deja vu, lembrou do antigo cinema que frequentava nas tardes de domingo ao passar em frente ao supermercado dos dias atuais. Sem que se desse conta acabou chegando em casa.
     As experiências vividas naquela noite reforçaram e ressaltaram em seu íntimo, a importância de sua cruzada e a necessidade premente de chegar às últimas consequências em suas investidas. Não faria isso somente por ele, mas principalmente por seu amigos do centro velho da cidade. Eles mais que ninguém, eram o retrato do descalabro no qual o país estava mergulhado e já era mais que tempo de se tomar medidas para mudar esse trágico trajeto...



LC OLIV


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